Especial Nada / Oração da Carne / Com as Tripas ao Sol | Versão 2019 | Fotografia de Mário Campos Rainha | Actor Duarte Melo
A fantasiosa arte da solidão
Está na hora de voltar. Está na hora. E, no entanto, um embaraço levanta-se e parece tolher os movimentos. A preocupação de como se faz agora? Como é que vamos poder fazer teatro em conjunto e enfrentar esta situação? Enfrentar os medos e dizer para dentro que tudo afinal não passou de um susto e que mais uma vez resistimos? Um diálogo do estilo só acontece aos outros e o pior já passou. Ou vamos enfrentar os medos e ainda assim cumprir as regras de afastamento social? Do estilo estar sempre afastados dos outros pelo menos dois metros? Usar máscaras e luvas, proteger-nos e proteger os que nos são próximos e o todo acima de qualquer coisa? Cada pergunta é como um fio que nos embaraça e prende.
Há alguém aí? Pergunto para dentro de mim esperando ouvir respostas. O coro que se levantava despareceu. Moveu-se para outros lugares. Nem o eco do som da voz regressa como que dando imagem de que existe um vazio por onde alguma coisa pode passar. Nem voz, nem eco nem respostas. Nada. Aos poucos nestes últimos dias secou como a água que desaparece das linhas de água e à pergunta há alguém aí não obtenho resposta. Fui-me embora. Mas como se ainda aqui estou? O que é que mudou?
Já anteriormente à crise do vírus a sensação de que estar só era algo que infundia medo e que nos aterrorizava. Paradoxalmente e por oposição estarmos todos juntos e numa multidão fazia-nos sentir como se fossemos um rebanho sem pastor. Recordemos as “horas de ponta” em que num transporte público ou numa fila de trânsito os receios e ânsias que com frequência nos atacavam quando num assomo de coragem a nossa consciência ganhava a distância necessária para nos vermos. Ninguém já, então, respondia à pergunta: está aí alguém? Os medos que temos são os medos de não saber porque é que estamos ali também. Os medos que temos são os medos de não saber o que nos pode e decerto nos vai acontecer. Esperamos a noite para que alguma ordem serena e cega se imponha sobre o ver o que nos está a acontecer. Mas a noite é portadora de mais temores e amplia os diabinhos e pequenos monstros que atormenta a necessidade de coragem para estar só.
Somos um mundo completamente virado para fora. Temos amigos. Vemos as séris da Netflix em barda e em conjunto mesmo que separados uns dos outros, falamos do que aconteceu lá fora, vamos ao futebol, fazemos sessões de terapia em grupo, passeamos à beira-mar com os carrinhos de bebé, vamos ao ginásio, vemos telejornais, ouvimos até doer as mesmas notícias sem nada de novo. E agora comemoramos o 25 de Abril, o 1º de Maio, a Nossa Senhora de Fátima todos juntos, mas a 2 metros de distância uns dos outros. Se antes já era difícil responder às perguntas: de onde viemos? O que somos nós? Para onde vamos? Quem sou eu? Por favor toque-me! Preciso de sentir! Sinto-me? Sentes-me? Tantas perguntas neste momento e ninguém para responder. Por favor alguém que reaja. Digam-me quem sou eu? Todas estas perguntas levam a ter que aceitar que nos afastámos tanto do núcleo que nos marca, do centro que nos define que só na relação com os outros somos e existimos.
Este isolamento forçado impôs-se como uma época à qual não imprimimos a nossa vontade. É uma época que afinal não foi construída, sonhada, inventada, pensada, por nenhum de nós. É o oposto dos caminhos que estávamos a seguir. Se teve a sua génese num fenómeno de grupo, num impulso de sermos todos um, afinal atirou-nos na direcção contrária. Na rota do eremita que leva uma luz ténue consigo e avança destemido pela escuridão. A cada um está a ser pedido que destrince neste tempo de isolamento o que o distingue dessa massa humana de que fazemos parte. Para perceber quem somos temos de nos sentir. Temos de recolher todas as partes divididas que estão espalhadas por aí. Cada um é: mãe, pai, filho, professor, guerreiro, político, amante, turista, treinador, fazedor de opiniões, trabalhador, preguiçoso, medroso, corajoso, amigo, sadio, ou pertença de um grupo de risco. Já se percebeu. Somos tudo isto que os outros nos vêm ser e para os quais nos armamos externamente. Mas de facto quem responde à pergunta quem está aí quando abrimos a voz para a solidão que nos rodeia? Fomos obrigados — ou assim o aceitámos todos — a retirar-nos por uns breves dois meses. Aprendemos a estar sozinhos e a gostar do que somos? Aprendemos que é a partir dessa arte esquecida da solidão que podemos reerguer a vida?
Este período de introversão, de solidão forçada está a terminar. Agora levantam-se todos os temores de como voltar e porque regressar a fazer as coisas que fazíamos antes. Mas pode ser de outra maneira? O teatro os actores têm de se reinventar. Como é que se pode representar com dois metros de distância entre corpos? E com máscaras e luvas? Desinfetando os teatros e por certo seguindo todas as normas pedidas. Deseja-se que este período de isolamento tenha sido fértil em ideias. Que a imaginação activa tenha trabalhado de forma secreta e ou explícita e que a falta de gente à volta de cada um tenha povoado os mundos interiores com muitos outros — novos e antigos personagens — e que sejam estes que estejam agora proto a subir ao palco. Espera-se que estes novos personagens tenham formas novas de dialogar, que tragam imaginação e invenção de forma a afastar os medos e os fantasmas que até há pouco ocuparam os palcos esvaziando-os de humanidade. Que estes novos personagens inventem canções, cambalhotas, números encantadores. E que esta época que não desejámos, mas que acabámos por abraçar nos traga coragem. Para receber com abertura e olhos limpos as oportunidades que estão a surgir. Que cada um olhe para o seu íntimo e o prepare para acolher o estar só connosco como um momento de construção interior.
O teatro ao se apagar a luz e cada espectador ficar entregue ao seu mundo e à escuridão que simula a noite onde cada um é confrontado consigo é um espaço preferencial para que o estar só seja uma forma generosa de estar em sociedade. O teatro é uma oportunidade magnifica de estar só consigo próprio e com todos os novos personagens que surgiram da nossa activa imaginação confinada. Sejamos eremitas pois. Sejamos como o eremita que ganhou essa qualidade de estar sozinho e de se confrontar com os recantos escondidos da sua alma com a sua candeia. É por isso que o Teatro Ibérico e a Companhia João Garcia Miguel se preparam para reabrir e retomar actividades no começo de Junho.
NOTA: texto livremente inspirado na carta de Tarot O eremita e no texto de Sallie Nichols Jung e o Tarot
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