Foto de Miguel Lopes — Performance Authorities por João Garcia Miguel — Deitado no Céu
ANJOS INÚTEIS
(texto para Teatherschrift 1999 por ocasião d festival Danças na Cidade)
Estórias de pessoas que vivem numa cidade à beira de um ataque
Água e borrões de óleo
Tenho a sorte de trabalhar num local à beira rio. Ás vezes perco-me a observar os borrões de óleo que se espalham entre as águas e o céu, arrastando outras impurezas, colando-as umas às outras. São escorregadias as cores que o petróleo reflete quando misturado com as águas. Os reflexos instantâneos estão sempre a acontecer. Um labirinto de portas para abrir. As portas do céu estão sempre abertas e é só entrar. O fumo é que incomoda imenso confunde-nos e deixa-nos cair em tentações. Este texto foi aparecendo como um borrão de óleo que se foi espalhando, fazendo-se e desfazendo-se ao longo destes últimos dias. Encaro-o como uma espécie de diário de viagens. Viagens entre cenas de peças, ideias soltas ou para construção de personagens; simples anotações misturadas com estórias de proveniências diversas, sonhos ou recordações de infância; frases soltas apenas. Acabou por ficar um pouco fragmentado e aqui ou acolá oleoso, inacabado ou mesmo um pouco incompreensível. Chegado o momento da partilha dou-vos aquilo que recebi.
Durante os períodos de ensaios a minha sensibilidade altera-se um pouco. Começamos sempre no escuro e depois vamos gatinhando. É como se não me decidisse a falar ou como se de repente me tivesse esquecido. O que digo, digo-o em várias vozes, gesticulando de várias maneiras, e até em várias línguas. A estratégia é viver como se estivéssemos numa cidade em guerra, sempre em movimento, escondidos quase sempre, e depois fazer saídas rápidas para a luz à procura de qualquer coisa. Despojos. Outras vezes, assalta-se os palácios reais e passa-se lá o verão todo a apanhar banhos de sol e a viver de contradições. O medo. O medo, por exemplo, serve para nos aproximarmos. Nem que seja à pancada ou pela necessidade de procurarmos confortos nos braços uns dos outros.
A cidade é aquilo que me pensa. Falar de pessoas que colocam a vida em risco a troco nada, pessoas que se magoam, pessoas que morrem, almas que se encontram em alta velocidade, sorrisos que se escapam nas esquinas, janelas entreabertas que deixam ver coisas, passeios no campo por entre as estrelas, animais em chamas, homens que se passeiam com árvores debaixo do braço, coelhos gigantes. Mas o que eu queria mesmo era uma horta exactamente no meio da cidade. Mesmo que fosse pequenina para plantar umas couves e talvez umas rosas. Mas sei que nunca vou ter paciência para as colher por causa dos engarrafamentos.
Trabalho quase sempre com ideias ou situações que me fazem sofrer, que me metem medo, ou que não gosto, ou que não percebo. Necessito de uma certa sensação física — tão forte que a consiga identificar em alguma parte do corpo — para poder afirmar que é assim que eu quero que as coisas fiquem. Considero isto como uma necessidade, uma espécie de contaminação física que confirma o contacto com outros mundos. Sejam eles quais forem ou como forem nunca prescindo desta sensação.
Coincidências
Há dias em que deste lado do planeta que não tem luz própria — o que às vezes nos faz imensa falta — acontecem coisas que me despertam desta minha distracção quase permanente.
O gajo que me vendia poemas, costumava encontrá-lo como se tivesse saído debaixo de pedras, com o aspecto de quem andava fugido no meio da guerra, há muito tempo. A primeira vez que lhe comprei um poema foi por romantismo e por achar que ele tinha sentido de humor. Ele afastou-se ligeiramente de mim e com os olhos embaciados fixou um ponto no horizonte. Tinha retirado entretanto uma minúscula folha de papel branco e uma caneta esferográfica preta de dentro de uma pasta enorme de cartão também preto. Depois de escrever o poema de costas para mim como se falasse sozinho, entregou-mo, pediu-me o dinheiro e um cigarro e foi-se embora. Confesso que não liguei muita atenção ao poema. A segunda vez que lhe comprei outro poema foi por fé. Esta situação repetiu-se durante alguns meses, sempre com o mesmo ritual. A folha branca que já vinha previamente cortada, a mesma pasta preta, e a caneta sempre igual. Afastava-se um pouco, fixava os olhos algures no horizonte, e escrevia. Voltava a levantar os olhos como se estivesse à espera de alguma inspiração ou como se estivesse a fazer contas de cabeça. A partir do sétimo poema a coisa tomou-se um hábito. Na noite em que lhe comprei o décimo segundo poema, quando cheguei a casa, encontrei por acaso um dos outros onze poemas. Comparei-os. Pareciam iguais. Procurei outros e eram todos iguais à primeira vista. Depois de os reler com mais atenção percebi que tinham todos exactamente as mesmas palavras. Tinham exactamente as mesmas palavras e os mesmos sinais ortográficos. Estavam era todos dispostos numa organização diferente.
O homem com aspecto de ser muito velho, com uma barba e um cabelo enorme que mal lhe deixavam ver a cara, estava sentado à porta de uma igreja com um chapéu à frente. Tinha sempre a mão direita no ar como se se equilibrasse. Olhava para as pessoas de lado e assobiava. Desviava imediatamente o olhar sempre que alguém o olhava nos olhos. De vez em quando parecia que reconhecia alguém e chamava insistentemente. Quando alguma das pessoas se aproximava oferecia-lhe moedas, de forma a que nunca ficava com moedas nenhumas no chapéu. No dia a seguir, voltei a passar por aquele mesmo local e estava uma pequena multidão em volta do mesmo homem. Sentia-se uma estranha energia no ar. Algumas pessoas estendiam as mãos para lhe darem moedas. Ele, por debaixo da grande barba, abria a boca pequena e colocava-as na língua com uma espécie de enlevo místico; fechava os olhos, e engolia-as num estertor aflitivo, como se lhe faltasse a respiração. A multidão soltava expressões de admiração e voltava a repetir-se a mesma cena quando alguém lhe dava mais moedas. Até que, de repente, o velhote se levantou e saiu de braços erguidos para o céu. Algumas pessoas ainda o seguiram mas ele virou-se para trás com os olhos raiados de sangue e começou a vomitar buracos. Milhões de buracos, escuros, redondos e muito pequeninos que se espalhavam rapidamente pelo chão e avançavam de encontro à multidão rodeando-a. Os buracos iam crescendo rapidamente, aumentavam de tamanho e havia buracos por todo o lado por onde agora podiam entrar as pessoas. Cabeças a espreitar, braços e pernas passando de um lado para outro, entrando e saindo de dentro e entrando para dentro deles. E a multidão deliciada ria-se e falava alto sem saber porquê, só porque era bom. Só porque é bom sentir como a língua se enrola quando o fazemos. E as pessoas começaram a arrancar os seus próprios braços e trocavam-nos uns com os outros. Tudo isto sem o menor sinal de dor. Substituíam os braços entre si como se trocassem de peças de roupa. E isso excitou-as tanto que começaram a trocar os pés pelas mãos, as pernas com as cabeças. A velocidade aumentou tanto que se desfizeram em ossos, pó e branco.
O negro que me via a aura passava tardes inteiras a meu lado. Encontrava-me por acaso ou entrava simplesmente no local onde estava a trabalhar. Olhava para mim duma maneira que assustava e deixava-me cheio de ansiedade e às vezes um medo tão grande que quase paralisava e tinha de me acalmar controlando a respiração. Com os olhos muito abertos, fixos, com os dentes pontiagudos ligeiramente saídos dos lábios, sussurrava constantemente. Nunca percebia imediatamente o que dizia pois começava a tremer e não conseguia impedir que me assaltassem imagens de homens em guerra, com os corpos mutilados, todos cheios de sangue, aos gritos. Entendo apenas que ele me diz que tenho uma aura muito luminosa, uma grande energia, dá um estalido com a língua e cala-se. Fica novamente a meu lado uma massa gigante completamente ausente, como se estivesse ali à espreita para me dizer qualquer coisa mais. Tem uma cabeça enorme. À pouco tempo vim a saber que ele faz e diz o mesmo a outras pessoas que também o conhecem. E concordámos todos que aquele negro, que nos criava a todos a mesma sensação de medo, conseguia projectar as mesmas imagens nos nossos pensamentos. Assim como se a cabeça dele fosse uma máquina de projecção e nós fossemos o ecrã onde ele projectasse o que lhe apetecia. Acidentes terríveis. Assassinatos em massa com sangue a escorrer muito devagar como lesmas. Ruinas, prédios inacabados, cemitérios de barcos. Paisagens enlouquecidas.
O gajo que me quis vender livros dos julgamentos célebres do sec XX tinha umas mãos muitíssimo elegantes. Quase que dava para olhar para dentro das mãos dele e perder-me nos seus movimentos repetitivos enquanto apanhava insectos minúsculos e os esmagava com toda a elegância do mundo, entre o polegar e o dedo médio. Segundo ele os insectos apareciam-lhe de sob a pele como que a espreitar as suas distracções, e saltavam cá para fora. De forma que ele tinha de estar sempre com muita atenção para os apanhar, antes que fugissem ou voltassem a entrar para dentro do corpo dele. Isso não parecia incomodá-lo muito. Era apenas uma tarefa a que se aplicava com uma calma abnegação. Sem selvajaria. Com cada pequeno insecto morto ele fazia um rolo que juntava aos anteriores tecendo um fio. Ao mesmo tempo que ia caçando insectos, ia-se cobrindo com o fio. Com o passar da noite os seus movimentos ficaram cada vez mais difíceis, até quase não se poder mexer. Dei-lhe cigarros e paguei-lhe umas cervejas e ele desistiu de me tentar vender os livros. Ainda me leu parte de um dos livros. Para meu espanto lia a cantar. A pouco e pouco o fio foi ganhando forma de casulo e ele deixou de me ouvir e eu deixei de o ouvir a ele.
Nos outros dias, em que só me interessam as flores do céu e o que tu dizes de boca fechada, gosto imenso de mudar de opinião e de me despir em qualquer lado. Pelo menos farto-me de me imaginar despido na rua e em casa e no meio do campo e debaixo das escadas e imaginar que ás outras pessoas também lhes passam o mesmo pela cabeça. Já aconteceu pedir a estranhos na rua que se despissem, e ofereci-lhes mesmo dinheiro. Mas nesta cidade aonde vivo nunca ninguém se despe só assim por que lhe pedem. Tem de se pedir de uma forma muito especial. E ainda bem. Os artistas não deviam de usar roupa! Nem objectos! Deviam andar todos nus! Deviam passar o tempo a cantar e a dizer poemas e outras coisas em cima das árvores, principalmente à noite. E deviam andar sempre com uma pedra na cabeça para serem facilmente reconhecíveis, mesmo no escuro.
Para mim o futuro é todo à chuva, disse-me um gajo com aspecto de asiático no outro dia quando eu estava a ler um jornal que leio quase todos os dias, e eu fiquei a olhar para ele a pensar. Tudo sempre a desabar e sentir um certo conforto nisso. Lembrei-me de ter vivido numa casa onde chovia dentro. Algumas noites tinha que me levantar e apanhar a água do chão. Tinha que espalhar alguidares, baldes e tachos pela casa toda para que não ficasse tudo alagado. Uma noite acordei com a chuva a molhar-me a cara. Tive uma sensação enorme de raiva misturada com um medo terrível que o mundo fosse acabar naquele momento. Senti que ainda não estava preparado para isso. Como era impossível mudar a cama de lugar, acabei por ter de dormir encolhido no meio de tachos e baldes de plástico espalhados pela cama. Nessa noite sonhei que matava um homem que se aproximava de mim à porta de minha casa. Não sei porque razão, trazia uma pistola enorme comigo. No momento exacto em que disparei apercebi-me de que aquele homem era o meu irmão. E no momento seguinte enquanto a bala o atingia ele transformava-se num veado. Ferido a sangrar do peito. Eu não podia fazer nada. O meu coração rebentava de preocupação. Fiquei ali, de olhos muito abertos, encolhido. Entre mim e lá fora havia um enorme abismo negro sem nenhuma ponte. Perdi-me completamente.
Tragédias imensas que acabam e começam em ataques de teimosia.
Não nos intimidarmos com nada e isso é uma grande mentira.
A mentira é boa, assim como tudo o que é falso é estúpido.
O instantâneo está sempre a falhar.
Animais que acabam sempre por morrer.
Desastres, acidentes, choques frontais.
Homens que se põem à frente de comboios.
As flores estão a voltar para as árvores. Não, são borboletas.
Paralisações parciais ou paredes que desabam.
A rapariga que se desfez aos bocados.
Eram cinco ou seis e caminhavam em linha ao lado uns dos outros. Ao longe parecia que eram da mesma família e que estavam todos zangados. Avançavam e recuavam, e acabavam por ficar sempre no mesmo lugar. De vez em quando, sem nenhuma razão aparente, um deles ajoelhava-se e começava a gritar. Os outros imitavam-no e, todos de cócoras gritavam o mais que podiam. Depois iam-se levantando e caindo novamente enquanto gritavam. Até que se começavam a cansar e iam cessando de gritar. Recomeçavam novamente a andar, sempre em linha para a frente e para trás, cada vez mais depressa, chocando e tropeçando uns nos outros. De novo um deles ajoelhava-se e começava a gritar e os outros seguiam-no. E estas situações repetiram-se até que começou a chover. Logo a seguir saíram do palco.
Agir como esponjas Roubar coisas uns aos outros Traições satisfeitas
Sessenta segundos de movimento circular acelerado
Peidos e arrotos como crianças perversas a querer irritar os papás
Drogas amigas o povo está convosco
Gajas boas que nunca me fodem
Provocações? A quem como e porquê? A mim mesmo? Aos espectadores? Desorganização? Falta de dinheiro? Gente a morrer à fome? Ir e voltar?
O bêbado que dava beijos no poste até que a mulher o veio buscar
O defeito da memória
Absolutamente compulsivo
Estou aqui
Tu não me amas
A construção de uma espécie de casulo
De vez em quando chego ao pé de um telefone
Morrer e ressuscitar
Isso é muito bom
Não tens hipótese nenhuma
O chão é uma parede
Anjos inúteis
É a guerra. É a guerra. Uma criança gigante dá ordens numa sala com as paredes pintadas de preto. Às vezes mal se ouve o que diz. De repente agita-se. A sala está cheia de eletricidade. Tira notas para quando fôr grande não se esquecer de como é ser criança. Pode passar horas sem dizer nada. Senta-se ou deita-se sem adormecer e fica a olhar. Muitas vezes fala alto, com um tom decidido, mesmo autoritário. De vez em quando grita. Disrupções. E acalma-se bruscamente. Nunca se sabe muito bem o que ele é capaz de dizer. É uma criança. Passa horas a construir hipóteses abstractas. Puzzles. Apaga e acende luzes. Anda sempre com um bloco notas debaixo do braço feito com folhas de diferentes tipos de metal onde guarda imagens reflectidas.
Passa-se tudo no espaço. O egoísmo, a avidez e o instinto de posse. Tudo misturado com medo. Um espaço que vai sendo preenchido em todas as direcções. Tudo sempre e ao mesmo tempo. De vez em quando sincronizamos, fazemos alguma descoberta, tomamos nota de coincidências ou decidimos algo. Algumas direcções vão ganhando mais peso. Infiltram-se com mais força. Os diferentes pesos do espaço atraem-me. Como um íman arrastam-me. Deixo-me ir atrás de uma sensação de melodia, à procura de uma semelhança ou de um encantamento.
Com uma sensação de desgosto por ver aquilo que se vê, modifico aquilo que vejo para aquilo que entrevejo ou suspeito. Experimento. Abro a porta para ver se encontro um lugar que me provoque qualquer coisa. Cócegas por exemplo. Gosto de contradições. Gosto do meu mau humor e de me sentir completamente perdido. Desafios. O chão está de tal modo inclinado que não consigo sair deste canto. Depois escolho o local mais desagradável e recomeço tudo outra vez.
Preconceitos. Trabalhar com preconceitos. Aquilo que se vai fazer a seguir não pode ter ligação nenhuma com a cena anterior. Ou cada cena não pode ter nem mais nem menos de três minutos. Ou o que se diz já perdeu o sentido, mas continuamos a fazer um esforço à procura de uma saída secreta. Ideias desencontradas apenas. Ou apenas não querer dizer nada e dizê-lo.
No fim, acho que apenas quero entreter as pessoas. Distraí-las. Tomar-lhes a atenção. Comê-las e ser comido por elas. E falar. Falar ininterruptamente. Falar da angústia de me separar e de acabar as coisas. E de quão longe estou de ser feliz. E, por momentos, tão próximo que mal me aguento. E que não tenho nenhuma estratégia especial a não ser não ter estratégia nenhuma. O que vai acabando por se afirmar como uma estratégia.
Às vezes, ao trabalhar numa peça, persigo uma ideia ou uma forma obsessivamente. Outras, deixo-me ir ao sabor dos dias. Outras peças, são criadas com base em pressupostos geométricos apenas. Abstracções totais. Por vezes misturam-se várias direcções. Irrita-me por vezes a repetição, assim como de outras vezes me encanta.
As estórias. Gosto de ouvir pessoas a falar. Mesmo que não esteja com atenção. Ou que não perceba o que estão a dizer. Reordenar apenas mentalmente os sons que oiço. O som distrai- me. É por falta de coragem que ordenamos as coisas. São tantas que nos enredamos. Como fios que nos prendem. Se puxarmos muito arrancam-nos bocados de carne. Da nossa própria carne. O resto é confusão e é eterno.
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