foto por Mário Rainha | Actor Paulo Mota
O jornalista Wilson Ledo entrevista a propósito da peça “Um Plano do Labirinto” o encenador e diretor da Companhia João Garcia Miguel para o Jornal de Negócios
1. A Guerra Colonial portuguesa em África é um episódio muito recente. Diria que é por isso que ele continua ainda a ser um assunto tabu, pouco falado?
É, de facto, um assunto pouco falado e, sempre que se aborda o mesmo, a sensibilidade dos que viveram este tempo é tocada em pontos que são mantidos ou em silêncio ou numa obscuridade que são sinónimo de desconforto. A este sentimento - ao qual é difícil dar um nome - associa-se a falta de ferramentas e de lugares para se poder falar de forma a libertar as tensões que todo o conflito gerou. É preciso entender que o que se chama “a Guerra Colonial portuguesa em África” é um episódio de um longo processo de relacionamento entre povos, entre pessoas, que construiu um vasto mundo de relações. Foi, precisamente, para criar um espaço de reflexão e de partilha que encenámos “Um Plano do Labirinto”, uma peça profunda, com base em vivências reais, que nos permite entender um pouco mais os meandros da Guerra Colonial.
2. Essa necessidade de debater o tema tem surgido através da arte. É uma forma de repor a verdade perante uma construção histórica parcial?
Quando duas crianças andam à luta e são interrompidas por adultos, que as interrogam sobre como é que começou a luta, ou por que razão estão a brigar um com o outro, as crianças acusam-se mutuamente e dizem que foi o outro. Isto significa que o nosso pensamento racional nestes casos soçobra e perde a sua razão e ponto de vista. As artes são um sistema muito mais circular e menos de causa e efeito. Nem sempre esta relação se estabelece como prioridade ou sistema de valor perante uma obra de arte. A verdade e a mentira dependem do local de onde se observa a situação e a arte ao estabelecer leituras paradoxais permite uma aproximação onde alguns outros valores se erguem em simultâneo. Ou seja, onde os valores de culpa e de quem tem razão surgem esbatidos e são substituídos por outros como a compaixão, ou o humor, por exemplo. A arte é um meio apropriado para se poder regressar ao assunto sem um julgamento associado, imediato. Esse tempo é fundamental para se poder reconstruir uma relação histórica parcial, que dê, depois, acesso ao diálogo e ao aprofundar da cura de feridas que teimam em manter-se.
3. É comum a frase “Portugal não é um país racista” quando se fala de questões raciais. Mas não é Portugal um país racista quando insiste numa versão da história colonial em que é o colonizador bom?
Esta é uma imagem de nós mesmos, que temos de enfrentar de uma vez por todas. É uma versão irracional de nós portugueses e constrói um mundo que não foi, de facto, o que se passou e o que existiu. São muitas vozes que se levantam acerca desta nossa postura. É tão comum ouvir-se este tipo de afirmação e, sempre que se procura rebater, levantam-se um coro de protestos. Sejam eles mais expressivos ou silenciosos este aspeto é uma barreira que nos impede de fazer o luto e de abrir o coração ao que, de facto, se passou. É óbvio que muitos dos nossos conterrâneos que por lá viveram podem — na medida das suas vivências pessoais — arvorar este sentimento. O que é estranho é nós termos necessidade de combater o invasor espanhol, que está aqui tão próximo, por uma necessidade de cumprir a nossa vontade de ser independentes e não apliquemos o mesmo raciocínio àqueles que durante séculos dominámos pela força e pelo poder das armas. Portugal é um país com práticas racistas que conduziram ao sofrimento e ao constrangimento de muitos dos povos africanos com quem mantivemos relações coloniais. É importante ter a coragem de nos confrontarmos com isto como ponto de partida para uma reavaliação apropriada ao século XXI em que vivemos. A noção de humanidade assim o exige.
4. Replicar sem questionar a narrativa dominante não é uma forma de mostrarmos a nossa ignorância como povo?
Aplicar a classificação de ignorante a um povo é uma ideia na qual não me revejo. Interrogo-me de como é que o “povo” possa ser ou mostrar ignorância quando se trata de emoções ou sentimentos associados à exploração de terceiros. Esse valor — o sentir a dor do outro como sua — é o centro daquilo a que chama a nossa humanidade. Desconheço de onde veio esta narrativa e de como ela se mantém operativa. Suspeito que foi a própria narrativa dominante que em prol da sua defesa ergueu este epíteto de ignorante. Contudo, estou de acordo que não replicar as narrativas dominantes é uma forma de comodismo e de medo perante o instituído. A réplica ao que é socialmente apresentado como imagem coletiva é de per si algo que contraria a noção de que a história é feita por cada um de nós enquanto indivíduo responsável por si e pelos outros com quem convive. Acredito que cada um de nós deve interrogar-se sobre este período da nossa história e trazê-lo ao de cima e ao diálogo com os outros. No nosso caso, temos um projeto de formação e criação com Angola e Moçambique que se chama “Ondas Africanas” e que mantemos vivo e operativo desde 2014. E vamos trazendo estes temas para dentro das nossas criações como é o caso deste último espetáculo, “Um Plano do Labirinto”, que será apresentado no Teatro São Luiz de dia 23 de janeiro a 2 de fevereiro.
5. Do lado africano, apesar das feridas, tem-se constado que há muitos movimentos a pedir essa clarificação do impacto da presença portuguesa em África. Do lado português, nem por isso: o olhar continua a ser o de colonizador, com a expressão comum “Já fomos um país grande”. Portugal é um país incapaz de admitir essa culpa?
É um caminho longo, de facto, e ainda por percorrer, para que essa história do futuro se possa mostrar profícua e equilibrada para ambos os lados. É um espaço desconcertante e desconfortável que ainda nos habita e vai até crescendo entre nós. Essa ideia de grandeza sem objetivo que não seja a dominação do outro implica uma dificuldade de admitir essa mesma culpa. Estou de acordo com a pergunta sobre esse aspeto constrangedor, que nos anima de forma mais ou menos explícita, de que “já fomos um país grande”. Deve ter sido desse sentimento que nasceram os impérios europeus. E daí se resvalou depois para os estados nação e quando tudo isto falhou para essa ideia de uma Europa que é uma continuação desse sentimento de pertença a algo grande, gigante e ameaçador. Que surge em simultâneo como algo de protetor e de sinistro. A noção de proteger e desenvolver a vida como algo de que todos participamos e somos responsáveis é um valor que neste caso fica adiado e arredado das suas melhores possibilidades.
6. Nesta recolha, há alguma história particular que vos tenha marcado/gostariam de destacar?
Há um sentimento de incompreensão que merece destaque. Logo no momento de leitura do texto levantaram-se entre os três atores da peça – o João Lagarto, a Sara Ribeiro e o Paulo Mota - e criativos associados um conjunto de rumores e argumentos sobre o desconforto de algumas cenas. Racismo, insensibilidade moral, machismo, abuso de poder, exorcismo, redenção foram conceitos de imediato levantados contra os temas apresentados pelo autor do texto, Francisco Luís Parreira. O fundo da história é um romance de amor entre um branco e uma mulata que levanta toda uma muralha de preconceitos e questionamentos acerca da tolerância e da imagem de uma sociedade que se considera a si mesma como não sendo racista. O falhanço desse amor é simbólico e arrasta um conjunto de reflexões que, como aqui se aflora, estão muito longe de se fazer e de levar a um apaziguamento das consciências. É provável que esse amor entre dois jovens seja uma tentativa de ressuscitar África. Será ainda possível recuperar o nosso amor por África e pelos Africanos, o nosso incomensurável desejo de sermos outros e diferentes do que somos? Será que é ainda possível sentir e dizer como Flaubert numa carta a Feydeau, em novembro de 1859, acerca do seu romance histórico Salambô: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour entreprendre de ressusciter Carthage! C’est là une Thébaïde où le dégoût de la vie moderne m'a poussé”?
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