O homem sozinho e o Dia Mundial do Teatro! 2020

foto jgm — peça: O Fim do Fim de Amândio Anastácio e João Garcia Miguel | Actores: Duarte Melo e Paulo Quedas | 2019 

O homem sozinho e o Dia Mundial do Teatro!

O criador do teatro, o primeiro de todos os homens que criou o teatro estava sozinho e tinha muitos seres dentro dele. Mas não sabia como é que havia de os trazer para fora e um dia estendeu sua mão e uma gota de chuva caiu-lhe na palma da mão. Ele misturou a gota com a terra. E a água e a terra tornaram-se lama. O criador do teatro conhecia os pássaros e os outros animais de quatro patas. E tinha-se visto a ele numa poça de água reflectido. Mostrou os dentes. Franziu a sobrancelha. Rosnou como os cães. E riu-se. Primeiro ficou espantado, mas depois começou a rir. Ele ainda não sabia o que era isso de rir ou de chorar. Fazia essas coisas, mas não percebia porquê nem lhes dava um nome. Umas vezes sentia-se bem e outras mal. Então o criador do teatro, esse o primeiro de quem ninguém sabe o nome, moldou um boneco igual a ele a partir da lama. E disse-lhe lá de dentro naquela linguagem que era só dele: deixa-me ver como vais usar essas pernas e esses braços para andar e correr. A lama transformou-se num homem e começou a andar as tombos, tropeçava nas pernas, levantava-se rápido e apoiava-se com as mãos nas pedras e nas árvores. fazia isto tudo sem que desse bem conta de que alguém estava a olhar para ele. Bem, isso é magnífico! Disse o homem sozinho. Consegues andar e saltar e cair: fazes coisas exactamente como eu. O primeiro criador do teatro gostou de ver o homem pequenino e gostou de ver a diferença entre este e os pássaros e os animais de quatro patas. Disse então o homem sozinho: acho que precisas de mais companheiros. Precisas ele e precisas tu disse uma outra voz dentro dele. Depois pegou no pequeno homem feito de lama e rodou-o rapidamente na direcção dos ponteiros do relógio. Rodou-o com tanta força que homem pequenino ficou tonto, e, como sempre acontece quando se fica ou se sente tonto, o homem pequenino viu muitas imagens ao redor de si. tentava agarrá-las mas escapavam-lhe dos olhos. Logo atrás vinham outras e mais outras. Começou por ver o mundo todo a ficar verde contínuo, depois o céu azul misturava-se de muitas cores e a seguir teve de fechar os olhos e ficou tudo escuro. O homem pequenino viu todos os tipos de homens e mulheres, crianças, seres meio homem e meio animal. De todas as cores e tamanhos. Uns dançavam, outros falavam, uns subiam escadas, outros atiravam-se de cabeça para dentro de água. E quando ele parou e voltou a ficar parecido consigo próprio, quando deixou de ver o mundo às voltas dentro de si, havia todos aquelas mulheres e homens e crianças que ele tinha imaginado. Havia uma multidão de pessoas à sua volta que riam e batiam palmas. No meio estava o homem sozinho com muitas lágrimas nos olhos. Um rio brilhava pelas suas bochechas abaixo até à boca primeiro e depois até ao chão. O homem sozinho riu e chorou tanto que ficou montado numa ilha rodeada de água salgada. E sabemos nós que os homens adoram o ar e a terra, têm a cabeça levantada para o céu e os pés bem plantados no chão. Os homens vivem dentro de casas onde acendem a luz à noite e sentam-se à volta numa sala grande para conversar desde então. A luz que trazem para dentro de casa é uma imitação da luz que há lá no alto no céu, aquele astro dourado que nos lança buracos nos olhos e tudo isto porque raramente há luz que vem do chão. Há fogos de vez em quando, mas são fracas imitações do grande astro pendurado no céu. E os homens afinal fazem isto tudo, porque a gota de água que se tornou lama quando misturada com a terra — da qual o primeiro homem pequenino foi feito — caiu do céu de onde vem a luz. E misturou-se com a terra onde as sombras se escondem quando a luz aquece o chão onde embate. E foi assim que o homem sozinho descobriu como tirar o primeiro homem de dentro de si. Desde então o homem sozinho inventa homens pequeninos e grandes, iguais a ele e outros muito diferentes. Umas vezes põem-nos à luz outras esconde-os nas sombras. Mas vai aprendendo a ser sozinho e a gostar das histórias que os homens pequeninos lhe contam na sala de estar. Na sala de estar bem consigo e com o mundo. Na casa onde a luz é uma imitação do céu e a madeira do chão uma imitação da terra.

NOTA: Este texto teve como inspiração uma lenda da origem da tribo dos apaches jicarillas do Novo México contada por Joseph Campbell em As Máscaras de Deus — Mitologias Primitivas

João Garcia Miguel
27 de Março de 2020

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